Quem pensava que o mercado de carros elétricos no Brasil era apenas um sonho futuro deve estar se surpreendendo com a presença de tantos modelos eletrificados nas ruas do país. Por ironia, ou bons presságios, o carro elétrico mais vendido em 2023, o hatchback BYD Dolphin, traz estampado em seu chassi o lema “Realize seus sonhos”.
- E, como sonho sonhado junto é realidade, os emplacamentos de veículos leves eletrificados de todas as marcas chegaram à impressionante marca de 93.927 veículos no ano passado, aí incluídos os elétricos, híbridos e híbridos plug-in, segundo a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE). O total representa um crescimento de 91% sobre os 49.245 vendidos em 2022.
Embora isso represente apenas 4,3% do total de automóveis e comerciais leves comercializados no Brasil em 2023 (2.167.743 unidades, segundo a JATO Dynamics), a façanha aponta para uma tendência de forte crescimento.
Não por acaso, as vendas de elétricos nos três primeiros meses de 2024 começaram com mais um recorde, segundo a ABVE: foram 36.090 unidades vendidas, 145% a mais em relação ao mesmo período do ano passado.
Venda de carros elétricos no Brasil teve importante salto entre 2022 e 2023, segundo dados da ABVE.
Investimentos de grandes empresas em veículos elétricos
Mas esse crescimento exponencial nas vendas de veículos elétricos não veio do nada. Pelo menos dois grandes investimentos ajudaram a abrir caminho para o sucesso. O primeiro ocorreu em 2021, quando a fabricante chinesa GWM (Great Wall Motors) arrematou a fábrica que pertencia à Mercedes Benz em Iracemápolis (SP).
Especializada em SUVs e picapes, a GWM anunciou um plano de investimentos de R$ 10 milhões até 2032. No segundo semestre, a empresa dará início à produção do SUV médio Haval H6.
Build Your Dreams (BYD)
A segunda injeção de capital parruda ocorreu três meses após a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China, em abril de 2023. A empresa BYD, de Shenzhen, anunciou investimentos de R$ 3 bilhões, com foco na produção de veículos elétricos e na construção de uma fábrica no Complexo de Camaçari, na Bahia.
De lá, sairá o primeiro VE 100% brasileiro, o BYD Dolphin, que é hoje um dos queridinhos entre os importados, com 6.812 unidades emplacadas em 2023, além de ser escolhido como “Carro do Ano 2024”. Foi a primeira vez que um modelo movido a energia limpa faturou a tradicional premiação realizada pela revista AutoEsporte.
Eleito “Executivo do Ano” na mesma premiação, o presidente da BYD no Brasil, Tyler Li, disse que a fábrica em solo baiano é a primeira da empresa fora da Ásia. A produção deve ser iniciada entre o fim de 2024 e o começo de 2025, com capacidade para produzir 150 mil veículos elétricos e híbridos por ano.
BYD Dolphin foi eleito “Carro do Ano de 2024” pela revista AutoEsporte. Fonte: BYD/reprodução.
Higer Bus, Volvo e General Motors
A fabricante chinesa de ônibus elétricos Higer Bus também anunciou em 2022 investimento de US$ 50 milhões em uma fábrica na zona portuária de Pecém, em Fortaleza (CE), região cotada como principal polo para a produção de hidrogênio verde no Brasil.
Também em 2022, a fabricante sueca Volvo, hoje controlada pela holding chinesa Zhejiang Geely, anunciou investimentos de R$ 881 milhões em sua fábrica de Curitiba (PR), podendo chegar a R$ 1,5 bilhão até 2025. Em janeiro de 2024, foi a vez da tradicionalíssima General Motors divulgar um investimento de US$ 1,4 bilhão (R$ 7 bilhões) na produção de VEs no Brasil nos próximos cinco anos.
O site Diálogo Chino consultou executivos de várias empresas do setor automobilístico no final do ano passado. De acordo com eles, o Brasil apresenta vantagens competitivas para se tornar um centro de produção e exportação de veículos elétricos para a América Latina.
Qual a capacidade brasileira na produção de carros elétricos?
Quando companhias estrangeiras se dispõem a investir bilhões de dólares para produzir veículos elétricos no Brasil, isso vai além do otimismo, mas envolve uma combinação de fatores, dentre os quais a confiança e a convicção no potencial do negócio. Afinal, nenhum empreendimento é feito sem a certeza de viabilidade econômica.
Nesse sentido, o Brasil certamente apresenta algumas oportunidades importantes. Veja algumas:
Questões geográficas e geopolíticas
Não é novidade para ninguém que a China quer expandir suas marcas locais em níveis globais. Com as crescentes restrições impostas pelo governo dos EUA aos produtos chineses, não seria de se duvidar que essas indústrias pretendessem trazer seus carros do Oriente diretamente para as Américas.
Por isso, não é apenas coincidência que a CEO da BYD nas Américas, Stella Li, tenha prometido transformar a cidade de Salvador em um “Vale do Silício brasileiro”.
Junto com uma promessa de produção, que, sozinha, equivale ao dobro da produção demandada de veículos nacionais, a declaração revela que a fábrica de Camaçari irá desempenhar um papel importante nas estratégias de Pequim. Ou seja, o Brasil servirá com um hub de exportação para países da América Latina.
Brasil tem potencial de se tornar um importante hub de exportação de carros elétricos.
Recursos naturais abundantes
Além de reservas consideráveis de minerais importantes para a produção de baterias, como o níquel e o cobalto, uma pesquisa publicada em 2023 na revista científica MDPI – Multidisciplinary Digital Publishing Institute revelou que o Brasil pode se tornar uma potência na produção de lítio (ver gráfico abaixo), um dos minerais imprescindíveis na transição energética para tecnologias “verdes”.
Facilidade hídrica para a geração de energia
Uma das vantagens competitivas do Brasil para se firmar como um hub de exportação é a sua matriz energética, composta majoritariamente por fontes renováveis, como a energia hidrelétrica, que gera 65% do total da capacidade instalada no país. Isso sem contar o imenso potencial para geração de energia solar e eólica, que já respondem por quase 20% da demanda nacional.
Na contramão da crise
Depois de um período de vacas gordas – que elevaram a cota de mercado mundial dos veículos elétricos, sucessivamente, para 8,7% em 2022, 14% em 2022 e 18% em 2023, segundo estimativas da Agência Internacional de Energia (AIE) – o nicho em terras internacionais tem experimentado alguns perrengues em 2024.
Dentre as principais dificuldades estão o aumento do preço do lítio (elevando o custo das baterias), desaceleração das vendas, escassez de semicondutores e forte depreciação dos veículos usados.
Enquanto isso, no Brasil, é só brisa. Segundo a Statista, a projeção de receita do mercado de VEs em 2024 no país é de US$ 661,3 milhões, ou mais de R$ 3,3 bilhões. A expectativa de futuro da plataforma alemã é que o mercado brasileiro tenha uma taxa composta de crescimento anual de 16,92% de 2024 a 2028, projetando o volume de mercado de US$ 1,24 bilhão até 2028.
Brasil ficou em 5º lugar dentre os maiores produtores de lítio do mundo em 2023. Fonte: Statista/Reprodução
Afinal, o Brasil pode virar potência na fabricação de VEs?
Para o diretor de conteúdo e pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China, Tulio Cariello, embora o mercado de EVs no Brasil esteja ainda em seus estágios iniciais, é possível que — no longo prazo — nosso país possa alcançar os mercados mais avançados. Nesse processo, disse o executivo à Al Jazeera, os chineses poderiam funcionar como “pioneiros”.
No entanto, pondera o cientista político Mauricio Santoro à emissora catariana, os chineses vão usar o Brasil como plataforma de exportação para outros países da América do Sul, exatamente como outras multinacionais fizeram. Assim, essa ideia de que essa turma poderá, de alguma forma, reindustrializar o Brasil é no mínimo exagerada.
Além de infraestrutura básica e recursos naturais, tornar-se uma potência na fabricação de carros elétricos exige também muito investimento em pesquisa e desenvolvimento, um ambiente regulatório favorável e engajamento da sociedade civil.
Para, Rodrigo Zeidan, professor da Universidade de Nova York em Xangai, a atual infraestrutura para apoiar VEs no Brasil ainda é “terrivelmente inadequada”, o que joga para o longo prazo o (ainda) sonho de se tornar uma potência na fabricação de carros elétricos. “Nenhum país conseguiu reindustrializar-se”, conclui Santoro.
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