A vida depois do vermelho – Notícias

Ana Vinhas, do R7





Além de se preocupar com os sete filhos e os sete netos, a porteira Renata Cristina Carvalho de Souza, de 49 anos, tinha uma outra questão que lhe tirava o sono. Com o dinheiro apertado para pagar as contas de casa e ajudar a família, ao longo dos últimos anos, ela acumulou dívidas. No último mês, Renata aproveitou o programa de renegociação que atendeu presencialmente em agências dos Correios para acertar as contas e limpar o seu nome.


Uma dívida de R$ 5 mil foi negociada com descontos, acabando em um pagamento de apenas R$ 13. Outra, de R$ 2 mil, quitada com R$ 20. “A única coisa que a gente tem é o nome. Gosto de dar o exemplo aos filhos e netos”, disse Renata, aliviada e com a certeza de dever cumprido.


Com o efeito cascata incidindo sobre pendências acumuladas, que somavam mais de R$ 10 mil, o ascensorista Theodoro de Jesus não acreditava que um dia poderia acabar com as contas atrasadas. Ao renegociar, em março, ele conseguiu realizar o sonho de ter no nome limpo novamente com o pagamento de R$ 1,1 mil. “Sou baiano e tenho de honrar o meu nome”, disse Jesus, que mora na capital paulista há 35 anos.


O funcionário público Antônio Aparecido Pereira da Silva encontrou no programa de renegociação a solução para dívidas que ele nem sequer se lembrava da existência. “Havia uma de 2004, do cheque especial, que agora vou poder, enfim, resolver”, afirmou. Para ele, o programa ajudou na organização das finanças. “A gente tem uma noção de conjunto e se organiza para pagar.”


O catador José Ramão Mecias, que recebe o Bolsa Família, também aproveitou para acertar as contas atrasadas usando a parcela de março do benefício. “Vou escrever para todo mundo ver que meu nome está limpo”, disse.


“Estou em situação de rua. Mas meu nome é meu maior patrimônio”, acrescentou aliviado, depois de sair da agência dos Correios, na região central de São Paulo, com boletos para resolver as contas em atraso, desembolsando menos de R$ 200.


Essas histórias fazem parte do Desenrola Brasil, programa de renegociação de dívidas do governo federal, que até março havia beneficiado mais de 14 milhões de pessoas, num total de R$ 50 bilhões negociados. O programa foi prorrogado pela segunda vez até o dia 20 de maio.


A primeira etapa, que começou em julho de 2023, contou com os principais bancos retirando, automaticamente, 10 milhões de registros de dívidas de até R$ 100 dos cadastros de inadimplentes. Participaram pessoas com renda mensal de até R$ 20 mil. Essa faixa se encerrou no fim de dezembro do ano passado.


Já a faixa para pessoas com renda de até dois salários mínimos (R$ 2.824) ou inscritas no CadÚnico começou em outubro de 2023 e vai até o dia 20 de maio. Com negociação por meio da plataforma desenrola.gov.br, essa etapa ofereceu atendimento presencial em março, após parceria com a Serasa e os Correios.


Apesar de inicialmente ter uma previsão de atender 70 milhões de inadimplentes, o governo federal avalia o resultado como positivo. Segundo a secretária-adjunta da Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, Ana Maria Netto, o número de contratos renegociados até agora é expressivo, mas o mais importante é o movimento de redução da inadimplência.


A inadimplência e o comprometimento da renda atingiram recordes nos últimos anos. A pandemia de Covid-19 e, mais recentemente, a guerra entre a Rússia e Ucrânia provocaram impactos no mercado de trabalho, na inflação e no ciclo de alta de juros.


Para combater a inflação, foi necessário aumentar a taxa básica de juros, a Selic, o que encareceu as dívidas, principalmente as do consumidor que utiliza o rotativo do cartão de crédito, o cheque especial e as linhas de curto prazo.


Antes da pandemia, no final de 2019, os consumidores inadimplentes eram 63,3 milhões, segundo dados da Serasa. Esse número saltou para 72 milhões em maio de 2022, nível mais alto até então, segundo a série histórica que começou em 2016. Apesar do programa de renegociação, esse era o mesmo patamar de janeiro e fevereiro deste ano.


Segundo especialistas, a alta do endividamento das famílias foi provocada pelo descompasso entre o aumento da oferta de crédito e a falta de educação financeira da população.


Para Matheus Moura, diretor da Serasa, a educação financeira deve ser incentivada cada vez mais. “O endividamento atinge todas as faixas etárias e todas as classes sociais. E o ponto de partida, independentemente da renda, é o mesmo: não saber como lidar com o dinheiro”, afirmou em evento do Desenrola em março.


Moura explica que, nesse cenário, não saber lidar com R$ 100 ou com R$ 10 mil é a mesma coisa, porque o endividamento permeia diversas faixas etárias e classes sociais. “O ponto de partida é sempre o mesmo, é a falta de educação, a falta de informação de como vai lidar com o dinheiro, com o cartão de crédito. Essa é a grande questão”, avalia o diretor da Serasa.


Mas, depois de renegociar as dívidas, o que fazer para não cair no endividamento novamente? “As dívidas fazem parte da vida de qualquer cidadão, mas é importante administrar dentro do orçamento. O Desenrola está aí para ajudar não só na etapa de negociação, mas na etapa de educação. As pessoas têm que aprender a consumir com responsabilidade”, analisa Ana Maria.


A secretária-adjunta do Ministério da Fazenda destaca que, na plataforma do Desenrola (desenrola.gov.br), o consumidor pode acessar os canais de educação financeira, com cursos desde como sair da dívida a até como conseguir fazer algum investimento.


Já Aline Maciel, gerente da Serasa Limpa Nome, orienta o consumidor a ter calma depois de sair do vermelho e acessar os canais de educação financeira para aprender a lidar com o valor que ganha e com o que gasta.


“As pessoas ficam com nome limpo e querem consumir, mas tem que consumir com consciência. É importante acessar os programas que dão orientações e dicas de educação financeira aos consumidores”, afirma Aline.


O endividamento afeta não apenas a vida financeira, mas também a saúde física e mental dos endividados. Segundo pesquisa realizada em parceria com a Serasa, 83% dos endividados sofrem insônia por conta das dívidas. Além disso, 74% têm dificuldade de se concentrar no dia a dia, 62% sentiram impacto no relacionamento conjugal e 61% viveram ou vivem sensação de “crise e ansiedade” ao pensar na dívida.


“A saúde financeira e a saúde mental andam de mãos dadas. O endividamento machuca a nossa autoestima, machuca a nossa força de entender quem nós somos”, afirma a psicóloga Valéria Meireles, especializada em psicologia do dinheiro.


Segundo ela, o que esse endividado vivia na sua família com dificuldades relacionais, estresse financeiro, vai ficando para trás, como uma aprendizagem.


“Essa pessoa vira até uma referência na família dela, como aquele que tinha dívidas e superou. Isso em termos de saúde mental é importantíssimo, porque, quando você tem autoconfiança, você dá conta de viver, dá conta de se relacionar com as pessoas, dá conta de realizar seus desejos. A palavra endividamento passa por dividir a vida e, assim que sai da dívida, essa vida é unida novamente. E a sensação de bem-estar atua diretamente no emocional”, avalia a psicóloga.


O influenciador digital de finanças Thiago Godoi cita os problemas de saúde que a falta de planejamento e de organização financeira pode causar. “De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), o desequilíbrio financeiro está entre os principais fatores de ansiedade e depressão. Segundo a consultoria internacional TWC, o endividamento e o estresse financeiro são as principais causas de queda de produtividade. E também fonte de problemas nos relacionamentos”, relata.


Para ele, o estresse financeiro vai muito além de números e estatísticas. “É muito mais do que isso. Por isso, a renegociação de dívidas feita de maneira justa, de uma maneira possível, representa uma grande oportunidade, uma oportunidade essencial para a gente conseguir aliviar a situação de milhões de brasileiros que vivem sob esse estigma que é o sufoco financeiro”, afirma o influenciador.


Estudo que traçou o perfil do Desenrola mostra que a maioria das negociações foi feita por mulheres (55%). Em relação ao tipo de pagamento, metade foi à vista e metade parcelado. Entre o parcelado, 80% estão buscando o curto prazo, de até 12 meses.


É o caso do aposentado Expedito Borges Fernandes, de 66 anos, que tinha uma dívida de mais de R$ 2.000, que ele optou por pagar à vista — R$ 500, após renegociação. “Agora fico mais tranquilo”, disse Fernandes, que estava aguardando aparecer uma oportunidade para sair do endividamento. 


Poder visualizar todos os débitos disponíveis na plataforma do Desenrola e conseguir fazer uma única negociação são pontos que facilitam na hora de as pessoas lidarem com as finanças por meio do programa.


Para ilustrar, Pahoor cita o caso de um consumidor que tinha 14 dívidas, totalizando R$ 21,5 mil, de 8 credores diferentes. Por meio da plataforma do programa, ele conseguiu se reorganizar e negociar por R$ 2.600, em parcelas de R$ 120, ou seja, com 88% de desconto. “O programa trouxe um benefício muito grande para a pessoa conseguir se resolver”, observa.


O aposentado Manoel Elias de França é um exemplo disso. Ele negociou uma dívida de R$ 16 mil de um empréstimo pessoal realizado havia dois anos. Após acordo, ele pagará um total de R$ 800 em 12 parcelas. “Agora estou livre, porque dá para pagar. Antes não dava”, afirmou aliviado.


A inadimplência do rotativo do cartão de crédito, que é o valor da dívida que sobra ao não se pagar a totalidade da fatura, foi um dos principais motivos que levaram a um pacote de medidas do governo federal, Congresso Nacional e Banco Central para estancar o endividamento das famílias. 


Com juros que giravam em torno de 450% ao ano, o crédito rotativo acabou sendo regulamentado com um teto de 100% pelo Banco Central e CMN (Conselho Monetário Nacional) desde janeiro deste ano. Já que não houve consenso entre agentes econômicos envolvidos no mercado de meios de pagamento, como  consta na Lei do Desenrola.


Além de oficializar o teto de juros, o CMN instituiu a portabilidade do saldo devedor do cartão de crédito e aumentou a transparência nas faturas. Essas exigências, no entanto, só entrarão em vigor em 1º de julho.


Por meio da portabilidade, a dívida com o rotativo e com o parcelamento da fatura poderá ser transferida para outra instituição financeira que oferecer melhores condições de renegociação.


1) Portabilidade da dívda do rotativo, em que o consumidor poderá escolher o banco que tem a melhor proposta e passar a dívida para ele, onde vai fazer um novo contrato, com novas condições.


A medida também vale para os demais instrumentos de pagamento pós-pagos, modalidades nas quais os recursos são depositados para pagamento de débitos já assumidos.


2) As faturas do cartão de crédito deverão ter uma área de destaque, com as informações essenciais, como valor total, data de vencimento do período vigente e limite total de crédito.


3) Iniciativas de educação financeira devem ser promovidas pelas instituições de pagamento e demais autorizadas pelo Banco Central.


4) Bancos e outras instituições deverão garantir a indicação de um diretor responsável por essa área de educação financeira, que por sua vez terá de constituir mecanismos de controle e acompanhamento da eficácia das medidas adotadas.


• Pelo site do Desenrola Brasil 


Pelo site da Serasa Limpa Nome 


• Mutirão de Negociação e Orientação Financeira, promovido pela Febraban (Federação Brasileira de Bancos): pelos canais oficiais dos bancos e pelo portal consumidor.gov.br 

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