Capcom quase conseguiu proibir Mortal Kombat, KOF e outros jogos de luta! Entenda o polêmico caso

Quando a Nintendo fez um pedido de registro de patente de cerca de 30 mecânicas de Zelda: Tears of the Kingdom, como a habilidade de segurar, arrastar e grudar objetos, e até a tela de loading, várias pessoas criticaram a empresa. A principal crítica era que isso poderia limitar a criatividade dos próximos jogos de outros estúdios.

Mas e se algo semelhante acontecesse nos jogos de luta? E se os movimentos dos lutadores se tornassem exclusivos para apenas uma companhia? Como o gênero de luta seria afetado? O seu jogo favorito ainda existiria hoje?

Isso tudo levanta uma questão maior: qual é o limite da inspiração?

A Indústria de Games e Fliperamas em Xeque

Algo semelhante já aconteceu, e o mercado de games e fliperamas ficou em xeque em um dos casos mais emblemáticos da história dos jogos. Muitos só conhecem esse caso superficialmente, mas entrevistas em japonês e documentos oficiais revelam outro lado, talvez esquecido, mas que merece ser lembrado.

O caso reflete o quão caótica era a indústria dos games entre os anos 1980 e 1990. Por ser um mercado criado há muito pouco tempo, muitas empresas ainda não sabiam como lidar com os diversos aspectos da indústria.

Esses desafios iam desde o desenvolvimento dos jogos até questões trabalhistas ou de estoque. Um exemplo dessa desorganização foi o CPS Changer, o console da Capcom, que foi feito basicamente com peças de descarte.

Logo oficial da lendária Data EastFonte:  Data East 

A Data East: Pioneira dos Fliperamas e Consoles

A protagonista dessa história é uma das mais importantes desenvolvedoras de fliperamas e consoles dos anos 80 e 90: a Data East. Você talvez conheça alguns de seus jogos, como o clássico Burger Time, ou Karate Champ, considerado por alguns o primeiro jogo de luta. Outro título marcante foi Kung Fu Master, que criou o gênero beat ‘em up e foi desenvolvido pela lenda dos videogames Takashi Nishiyama, sendo publicado pela Data East. Se você for mais novo, talvez se lembre dos clássicos Windjammers e, principalmente, do amado Side Pocket para Super Nintendo e Mega Drive.

A Data East foi fundada em 1976 e rapidamente se destacou na indústria de games. Foi a primeira empresa, além da própria Nintendo, a obter autorização para lançar jogos no Nintendo 8-Bits. Além disso, a Data East detinha recordes de vendas em PCs, ocupava a segunda posição mundial no mercado de pinballs e ainda vendia equipamentos tecnológicos, como o primeiro fax portátil do mundo, o Datafax-2000C.

A empresa também conseguia adquirir licenças de grandes marcas, como Batman, Star Wars e Guns N’ Roses. Com isso, tornou-se uma das maiores publishers do mundo, financiando estúdios como Technos Japan e Capcom para criar jogos que ela lançava. Contudo, esse foi também um de seus maiores problemas.

A Data East investia muito na indústria de games, mas raramente acertava em seus lançamentos. Para cada jogo memorável, muitos outros de baixa qualidade eram financiados, divulgados e lançados. Com isso, a partir de 1990, várias divisões da empresa começaram a ser fechadas ou vendidas, como forma de conter os crescentes problemas financeiros.

A Capcom e os Jogos de Luta no Início dos Anos 90

Em busca de criar sucessos, a Data East, como muitas outras empresas, seguia as tendências do mercado. No início dos anos 90, o que estava em alta eram os jogos de luta, impulsionados por um título da outra protagonista dessa história: a Capcom.

O começo da que hoje é uma das 10 maiores de indústriaO começo da que hoje é uma das 10 maiores de indústriaFonte:  GameBlast 

Embora muito nova, fundada por Kenzo Tsujimoto em junho de 1983, a Capcom seguia um caminho completamente diferente da Data East, sua antiga parceira no clássico Commando. Ela começou pequena, mas com uma sequência de acertos, sempre investindo em crescimento e buscando mais sucessos.

Foi nesse contexto que nasceram clássicos como Mega Man, Final Fight, Ghosts ‘n Goblins, Strider e muitos outros. No entanto, o que realmente impulsionou a Capcom ao estrelato foi Street Fighter 2 em 1991. Nem é preciso mencionar o impacto deste jogo, que não só transformou o mercado dos videogames, mas também se tornou um fenômeno mundial. Street Fighter 2 é uma marca facilmente reconhecível na cultura popular e mudou a indústria, gerando enormes lucros.

O sucesso de Street Fighter 2 inevitavelmente fez surgir uma grande quantidade de jogos similares, com dois lutadores, sistema de rounds, poderes, combos e outros elementos. Exemplos disso são títulos como Mortal Kombat, The King of Fighters, Tekken e muitos outros, que ajudaram a popularizar o gênero de luta.

Alguns lançamentos, porém, iam além da simples inspiração e se pareciam muito com Street Fighter 2 em vários aspectos. Entre esses jogos estavam Art of Fighting, lançado pela poderosa SNK em 1992, Fightin’ Spirit de uma equipe desconhecida da Coreia em 1996, entre outros.

A Data East e o Lançamento de Fighter’s History

Naturalmente, a Data East não ficou de fora do boom dos jogos de luta pós-Street Fighter 2. Em março de 1993, a empresa lançou Fighter’s History, um jogo que se destaca por uma característica própria pouco lembrada: o sistema de “ponto fraco”. Esse sistema é marcado no corpo de cada personagem por algum detalhe do design, como uma bandana, máscara ou colete. Após ataques repetidos nessas áreas, o adversário fica atordoado, e os golpes nesse ponto tornam-se mais fortes.

Fighter’s History é, na verdade, uma espécie de continuação da franquia Karnov, um beat’em up lançado pela Data East em 1987. O personagem principal, Karnov, era uma espécie de mascote da empresa, aparecendo em diversos lançamentos até se estabelecer definitivamente em Fighter’s History, onde virou uma referência.

Sucesso Moderado e Comparações com Street Fighter 2

Poucos detalhes são conhecidos sobre o desenvolvimento ou os bastidores de Fighter’s History, já que a Data East não estava em condições financeiras de pagar pela sua divulgação adequada. Mesmo assim, o jogo surpreendeu.

Embora tenha sido um fracasso nos Estados Unidos, alcançando apenas a 27ª posição em popularidade, segundo a Play Meter, no Japão ele foi um grande sucesso. De acordo com as revistas Game Machine e Gamest da época, Fighter’s History ficou em segundo lugar nos arcades, perdendo apenas para Street Fighter 2, sua clara inspiração.

Muitos jogadores notaram que vários aspectos de Fighter’s History lembravam muito Street Fighter 2. Elementos como a história, telas, golpes e personagens eram frequentemente comparados ao sucesso da Capcom, o que não passou despercebido.

Fighter’s History era muito parecido. Durante esse tempo, muitas pessoas vinham até o pessoal da Capcom, até o Tsujimoto, e diziam: ‘Tem certeza de que vai deixar isso passar? Você realmente não pode deixar isso passar. Isso é muito ruim’”, afirmou Akira Nishitani, diretor de Street Fighter 2, em uma matéria da Kotaku.

Similaridades nos jogos entre Street Fighter e Fighter's HistorySimilaridades nos jogos entre Street Fighter e Fighter’s HistoryFonte:  Voxel 

A Decisão da Capcom de Processar a Data East

A Capcom não tinha um departamento jurídico no Japão, mas com os lucros crescentes de Street Fighter 2, o escritório americano decidiu, pouco antes de Fighter’s History, criar sua própria equipe de advogados para lidar com falsificações.

No meio de 1993, essa equipe recebeu uma ordem: “O presidente Tsujimoto foi quem finalmente decidiu que a empresa precisava ir atrás de alguém para dar um exemplo e impedir novas cópias”, revelou Ian Rosa, conselheiro jurídico geral da Capcom na época, em entrevista à Polygon. O problema, no entanto, estava na definição do que eles consideravam “cópias”.

Naquela época, por ser uma indústria muito nova, pouca coisa estava estabelecida em termos legais. Uma das “modas jurídicas” era processar por violação de direitos autorais jogos que fossem parecidos. Até a própria Data East, nos anos 80, já havia entrado nos tribunais ao processar a Epyx, acusando-a de copiar Karate Champ ao criar o jogo World Karate Championship para computadores. No entanto, esse foi um caso completamente diferente do de Street Fighter, com provas, leis estaduais distintas e até equipes de advogados diferentes.

As Razões para o Processo

Mas por que a Capcom realmente entrou nesse processo? O presidente da Capcom, Kenzo Tsujimoto, deu uma entrevista à revista Game Machine na época, afirmando: “É possível analisar tecnicamente um videogame por meio de engenharia reversa e fazer um jogo que seja essencialmente o mesmo, com diferenças apenas superficiais. A Capcom pretende provar, nos tribunais, que a Data East fez uma falsificação chamada Fighter’s History”.

Essa acusação de falsificação e engenharia reversa pode parecer estranha, e talvez fosse. Tudo indica que as motivações eram muito mais impactantes. Na mesma matéria, o presidente da Data East, Tetsuo Fukuda, foi categórico em sua resposta: “Certamente havia espaço para discutir o problema. No entanto, a Capcom abriu esse processo, colocando unilateralmente a Data East no papel de ‘vilã’. Isso nunca deve ser permitido. A Capcom trouxe as acusações simplesmente para monopolizar o mercado”, disse Fukuda. E ele provavelmente estava certo.

O Impacto Potencial na Indústria de Videogames

Esse momento representava um ponto crítico que poderia ter mudado a história dos videogames. A disputa entre as duas gigantes não era apenas sobre um jogo, mas sobre o controle do mercado de jogos de luta.

Art of Fighting à esquerda e Street Fighter 2 à direita

Art of Fighting à esquerda e Street Fighter 2 à direitaFonte:  Tecmundo 

Você já parou para pensar por que a Capcom escolheu processar justamente a Data East? Foi estranho que a empresa tenha direcionado o processo apenas contra ela, enquanto várias outras companhias maiores, como a ADK, com World Heroes, ou a gigante e arqui-rival SNK, com Art of Fighting — com a qual a Capcom já tinha um histórico de acusações de plágio e questões judiciais —, não foram processadas. Além disso, é suspeito que o alvo tenha sido apenas Fighter’s History, um jogo que quase ninguém nos Estados Unidos se importava e que foi feito por uma empresa financeiramente fragilizada, sem condições de sustentar um processo judicial desse porte por muito tempo.

Tudo indica que a Capcom queria usar a Data East como uma espécie de “bucha de canhão” para gerar jurisprudência. Ou seja, ela pretendia mostrar aos juízes que apoiar seu argumento seria a decisão mais correta e juridicamente aceita. Assim, a Capcom poderia inibir o lançamento de jogos de luta semelhantes a Street Fighter, processando outras empresas e, eventualmente, se tornando a única a poder produzir games desse gênero.

“Se você começar a dar esse tipo de proteção ao primeiro entrante no mercado, esse entrante terá a oportunidade de se tornar um monopolista. Vimos o caso como algo que, em última análise, colocou uma questão central: alguém pode ser dono de um gênero [de jogos]?”, disse Claude Stern, um dos advogados de defesa da Data East na época, em entrevista à Polygon.

Muitos destes personagens deixariam de existir ou sequer nasceriamMuitos destes personagens deixariam de existir ou sequer nasceriamFonte:  Reddit 

O Que Estava em Jogo?

O que estava em jogo ali era muito maior do que apenas um jogo de luta de baixo orçamento. O próprio presidente da Capcom, Kenzo Tsujimoto, deixou escapar isso em uma entrevista à Game Machine: “Se um videogame for igual a outro em termos de ação do jogo, mas diferir apenas em personagens, plano de fundo, cores etc., e não houver processo, isso deixará a porta aberta” para o que ele chamou de “cópias não autorizadas”.

Seguindo essa lógica, jogos como Mortal Kombat, The King of Fighters, Tekken, Killer Instinct e todos os títulos que possuem ação similar a Street Fighter 2, diferindo apenas em “personagens, planos de fundo, cores etc.”, estariam passíveis de serem processados, retirados de circulação e proibidos. Isso faria da Capcom a única produtora de jogos desse gênero, que era o mais popular do mundo na época.

Obviamente, hoje não é possível saber se a Capcom realmente iria processar outras empresas de jogos de luta. No entanto, é difícil não observar que, com a jurisprudência, não haveria motivo para a empresa simplesmente permitir que outros games lucrassem com o que ela entendia serem falsificações de Street Fighter 2. Tanto que a Capcom criou um departamento jurídico inteiro para combater isso. É provável que ela buscasse o poder jurídico para controlar o mercado de jogos de luta, elaborando uma estratégia robusta para garantir sua vitória.

Matéria da Game Machine #585 de 1 de dezembro de 1994Matéria da Game Machine #585 de 1 de dezembro de 1994Fonte:  Game Machine 

A Disputa Judicial da Capcom

A Capcom pegou pesado e, para complicar ainda mais a defesa, processou a Data East nos Estados Unidos, alegando que ela havia copiado Street Fighter 2 original. No Japão, a acusação era de que havia copiado Street Fighter 2 Champion Edition. Os dois processos foram enviados simultaneamente em setembro de 1993, alegando quebra de direitos autorais e exigindo uma multa de 623 milhões de ienes, o que, ajustado pela inflação americana para 2024, seria equivalente a quase US$ 900 milhões — ou, em conversão direta, mais de R$ 4,3 bilhões.

Além disso, a Capcom entrou com uma liminar exigindo a imediata proibição da Data East de criar ou distribuir qualquer coisa relacionada a Fighter’s History, tanto no Japão quanto nos Estados Unidos, os dois maiores mercados de games do mundo na época.

As Alegações nos Processos

E o que havia nos processos? Em ambos, a Capcom acusou a Data East de violar uma lei chamada Trademark Act. Segundo a acusação, Fighter’s History teria copiado Street Fighter 2 ao incluir elementos semelhantes, como a história, o gabinete de fliperama, a composição da tela (como barra de vida, cronômetro regressivo, tela de versus e tela de vitória), combos, comandos, visual dos personagens e 27 golpes, entre outros.

Um dos maiores riscos para o gênero e para os fliperamas em geral estava em uma das principais alegações: “a identidade visual de Street Fighter inclui: […] layout físico dos dois joysticks de oito direções e painéis de controle com seis botões”. Se essa alegação fosse aprovada em juízo, a Capcom poderia afetar não apenas os fliperamas e seus jogos, mas também a produção de controles arcade, tornando-se a única produtora desse tipo de produto nos principais países que compram e vendem controles arcade. Foi nesse momento que a disputa começou.

Abertura de um dos documentos do processoAbertura de um dos documentos do processoFonte: Tribunal Distrital do Norte da Califórnia

A Resposta da Data East

A primeira resposta da Data East foi dada à imprensa japonesa, com um comunicado afirmando que “todas as semelhanças apontadas pela Capcom são comuns em outros jogos de luta. Portanto, as acusações da Capcom são excessivas e representam uma ameaça ao futuro da indústria dos videogames.”

Em seguida, a empresa partiu para os tribunais, iniciando o processo nos Estados Unidos, onde ocorreu o julgamento da liminar que pedia a suspensão de Fighter’s History em março de 1994. Ali, começou a ser decidido o futuro do gênero de jogos de luta.

O Julgamento

E a situação não começou bem para a Data East. A apresentação de supostas inspirações reais para Fighter’s History não convenceu o tribunal. Como relata a Game Developer, o juiz William H. Orrick Jr., do Tribunal Distrital do Norte da Califórnia, reconheceu imediatamente que Fighter’s History tinha semelhanças demais com Street Fighter 2.

Em seguida, como revelou a Patent Arcade, a Data East apresentou um documento de design usado na criação do jogo, com 9 páginas, como prova de que o game seria original. No entanto, o documento continha 22 anotações e referências diretas a Street Fighter 2, feitas por funcionários, o que indicava que realmente usaram o jogo da Capcom como base. A situação parecia muito complicada, mas foi então que a mesa virou. Tudo isso fazia parte do plano dos novos advogados da Data East.

“Havia algumas evidências terríveis. O fato é que os artistas da Data East estavam copiando Street Fighter. O trabalho final não era uma cópia exata — uma cópia pixel por pixel — mas havia evidências de que estávamos copiando elementos. E nossa resposta foi: o que estávamos copiando não era protegido.”

O advogado de defesa Claude Stern admitiu que a Data East não era uma vítima indefesa nessa história e que, de fato, havia copiado Street Fighter 2 em vários aspectos, mas afirmou não poderia ser processada. Isso, pois, a Capcom não detinha os direitos sobre como golpes e jogos de luta funcionam. Essa foi uma tática ousada, mas a cartada de mestre veio logo em seguida.

Karate Champ acima e Street Fighter 1 abaixoKarate Champ acima e Street Fighter 1 abaixoFonte:  Tecmundo 

A Defesa da Data East

A Data East mostrou que, na verdade, Street Fighter 1 foi quem copiou primeiro, pois o jogo possui várias semelhanças com Karate Champ, desenvolvido pela própria Data East. Isso inclui roupas, golpes, cores dos personagens, sistema de jogo e outras alegações que a Capcom havia usado. Assim, se as acusações fossem aceitas pelo juiz, a franquia Street Fighter teria que ser proibida de ser vendida, e a Capcom deveria pagar indenização à Data East.

Além disso, foi revelado que a Capcom sequer poderia alegar ser dona da marca Street Fighter nos Estados Unidos, já que até aquele momento seus pedidos de registro de patente haviam sido negados devido ao nome já estar em uso por uma linha de brinquedos. Portanto, não poderia afirmar que seus direitos autorais estavam sendo violados. Essa defesa foi completamente inesperada, mas o juiz entenderia e concordaria com isso? Realmente, todos os itens que a Data East admitiu ter copiado não eram exclusivos da Capcom?

Derrotas no tribunal

No primeiro julgamento, em 16 de março de 1994, e em várias requisições seguintes, a Capcom sofreu diversas derrotas acachapantes. Por exemplo, a alegação sobre os comandos: segundo o tribunal, a Capcom não pode afirmar que é dona de um quarto de círculo, que é o comando do Hadouken, em um controle que funciona universalmente fazendo um círculo.

Outra derrota importante foi no pedido para não julgar detalhe por detalhe, mas sim como um todo, pois, segundo o juiz, não é assim que se julga em um tribunal sério. Para piorar, uma das estratégias da Capcom deu muito errado: ao apresentar outros jogos de luta como exemplo de que era possível criar games diferentes, o juiz entendeu o contrário.

Ele viu neles vários elementos que a Capcom alegava serem exclusivos, como barra de vida e tela de versus, e concluiu que esses elementos fazem parte do gênero em si, portanto não podem ser de direito único e exclusivo da Capcom. A situação foi bastante complicada.

Uma das principais decisões do Tribunal Distrital do Norte da CalifórniaUma das principais decisões do Tribunal Distrital do Norte da CalifórniaFonte:  Tribunal Distrital do Norte da Califórnia 

Vitórias nos Estados Unidos e no Japão

Entretanto, nem todas as notícias foram ruins para a Capcom no julgamento americano. Apesar dos reveses, a Data East também teve alguns pedidos negados. Isso ocorreu porque diversos testes foram aplicados para determinar se realmente houve cópia de algo protegido. E houve: “O tribunal concluiu que, em relação aos detalhes expressivos protegíveis dos personagens de Street Fighter II, três personagens de Fighter’s History (Feilin, Ray e Matlok) são semelhantes a três personagens de Street Fighter II (Chun Li, Ken e Guile)”.

Além disso, o tribunal entendeu que cinco golpes de Fighter’s History eram, de fato, semelhantes aos do jogo da Capcom. Por isso, a Capcom solicitou um julgamento com júri, pois tinha uma carta na manga: o julgamento no Japão.

Segundo a Game Machine, em 1 de dezembro de 1994, a Capcom fez um anúncio nos jornais japoneses atacando a Data East, exigindo uma indenização e um pedido de desculpas público por supostamente copiar Street Fighter 2 Champion Edition. O julgamento ocorreu em 31 de agosto de 1994 no Tribunal Distrital de Tóquio, e o resultado foi uma grande derrota para a Capcom.

O tribunal não encontrou similaridade suficiente entre os jogos, e o juiz Yasuhiro Hasegawa sugeriu que as empresas chegassem a um acordo. Ele incluiu uma cláusula para encerrar também o processo nos Estados Unidos, oferecendo a chance de resolver a disputa de forma pacífica e rápida.

No entanto, a Capcom americana acreditava que as informações obtidas pela Data East nesse julgamento seriam a chave para a vitória nos Estados Unidos e recusou o acordo. Em vez disso, solicitou um novo encontro no tribunal japonês, que foi marcado para 5 de dezembro de 1994, onde também poderiam usar as informações obtidas nos Estados Unidos.

Requisição feita ao Tribunal Distrital do Norte da CaliforniaRequisição feita ao Tribunal Distrital do Norte da CaliforniaFonte:  Tribunal Distrital do Norte da California 

A Tática da Capcom

A Capcom adotou uma tática pesada que se intensificou na América. A empresa solicitou à Justiça a planta do escritório americano da Data East e fotos internas, alegando que eram partes importantes de sua argumentação. A visita ocorreu perto do julgamento, mas não surtiu efeito. Em 31 de outubro daquele ano, o tribunal se reuniu e, mesmo já conhecendo a defesa da Data East, a Capcom foi novamente derrotada.

Os jurados viram fotos dos dois jogos em fliperamas e foram questionados sobre qual era qual, sem que ninguém confundisse os games. Em seguida, a Capcom chamou o diretor de Street Fighter 2, Akira Nishitani, como testemunha para corroborar que Fighter’s History poderia confundir os jogadores. No entanto, ao ser questionado se já havia ouvido falar de um caso desse tipo, Nishitani hesitou e afirmou que nunca tinha ouvido nada parecido. A mesma resposta foi dada por outras testemunhas da Capcom, incluindo um dos vice-presidentes da empresa, o que enfraqueceu ainda mais seu argumento.

A Decisão do Juiz

Como relatado no estudo Hitting Reset: Devising A New Video Game Copyright Regime, da Universidade da Pensilvânia, o tribunal reconheceu que, embora três personagens fossem parecidos, eles e a obra em si não eram iguais. Além disso, o juiz decidiu que os golpes reclamados eram genéricos demais para serem propriedade exclusiva da Capcom. Para piorar, o juiz aplicou o princípio jurídico conhecido como Doutrina da Fusão, que determina que os direitos autorais não devem ser protegidos se isso criar um monopólio. Ao concluir que a Capcom teria um monopólio sobre os jogos de luta, o juiz deu ganho de causa à Data East.

Embora a Capcom ainda tivesse a chance de apelar, poucos dias depois ela entrou em acordo com a Data East. “O caso foi resolvido, principalmente porque não estávamos conseguindo a tração desejada nos tribunais, então nos afastamos”, explicou o consultor jurídico Ian Rosa. Após mais uma derrota e sem novas evidências, em 8 de novembro de 1994, a Capcom do Japão aceitou o acordo com a Data East, que incluía a desistência da ação nos Estados Unidos. Assim, ambos os processos foram retirados, encerrando a batalha. No entanto, essa história teve seus vencedores.

A Ascensão de Fighter’s History

Fighter’s History ganhou popularidade com a divulgação da ação, aparecendo mais em revistas, tornando-se uma série de mangás e tendo seus personagens fazendo participações em vários outros jogos, incluindo The King of Fighters, da SNK.

Após a primeira vitória nos Estados Unidos, o jogo foi lançado para consoles, seguido por duas sequências, incluindo o clássico cult Karnov’s Revenge, conhecido no Ocidente como Fighter’s History Dynamite, lançado para várias plataformas.

Ironicamente, nesta sequência, a Data East colocou uma grande cicatriz na barriga do chefe final, Karnov, afirmando que ela foi causada por um golpe do vencedor do torneio do jogo anterior — similar ao que ocorreu com Sagat, o chefe final de Street Fighter 1, quando retornou em Street Fighter 2.

O Acordo e suas Implicações

É consenso entre especialistas que, se a Capcom tivesse processado a Data East destacando apenas as semelhanças reais entre os jogos, suas chances de vitória seriam muito maiores. No entanto, ao subestimar a Data East e provavelmente ter outros interesses no processo, a alegação da Capcom sobre o que seria de direito exclusivo dela foi exagerada e abrangente, facilitando sua derrota.

Em nota à imprensa japonesa, a Capcom afirmou que aceitou o acordo porque sua intenção era “buscar melhorias para o futuro, como discutir a relação entre o desenvolvimento de jogos para console e direitos autorais na indústria de games.” Embora essa declaração pareça uma desculpa, na verdade, foi exatamente isso que ocorreu. A discussão sobre direitos autorais na indústria dos games foi criada, mas de forma oposta ao que a empresa inicialmente desejava.

O Impacto do Caso

Como comenta o livro Encyclopedia of the Video Games, 2ª Edição, Volume 3, de Mark J.O. Wolf, o caso foi tão significativo e detalhado que gerou jurisprudência, afetando diversos outros julgamentos similares até hoje. Isso ajudou a respaldar jogos que são parecidos, protegendo-os em vez de puni-los.

Com isso, cada vez mais games similares foram lançados, incluindo outros “falsificadores” de Street Fighter 2, assegurando não apenas a continuidade do gênero de jogos de luta, mas também sua expansão, além de garantir que outros gêneros de games pudessem fazer o mesmo.

Além disso, como aponta o artigo de John Quagliariello no jornal da Universidade de Direito de Harvard, após essa ação, cada vez menos processos alegando direitos autorais contra jogos similares foram abertos — até se tornarem algo raríssimo, como é hoje. No fim, podemos dizer que a Capcom conseguiu o poder jurídico para mudar a indústria que tanto desejava.

Ironicamente, quando Street Fighter 6 foi revelado, muitos apontaram que o visual de Ryu era muito similar ao de Mizuguchi, protagonista do último jogo da franquia Fighter’s History. Será que cabe um processo?

Ryu na revelação de Street Fighter 6 e Mizoguchi feito pela SNK anos depoisRyu na revelação de Street Fighter 6 e Mizoguchi feito pela SNK anos depoisFonte:  Tecmundo 

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