ESPECIAL: The King of Fighters é jogo de pobre? Relembre o sucesso da franquia que completa 30 anos

Fugindo da resposta óbvia sobre o valor da ficha, a qualidade visual e outros aspectos, por que enormes máquinas de KOF surgiram em cada lanchonete, sorveteria, farmácia, padaria, bar e praticamente em cada esquina do Brasil nos anos 90 e início dos anos 2000? Esse fenômeno ocorreu em diversos países, e sua origem está em uma ideia simples.

A melhor forma de explicar isso é falando sobre os “Kofeiros”. Eles são diferentes de qualquer outro grupo de fãs de jogos de luta e se engajam com tudo relacionado à franquia The King of Fighters, popularmente abreviada como KOF. Mas por que eles amam tanto essa franquia?

Fliperamas dos anos 90

Países que mais usavam Fightcade em 2016 para jogar jogos de fliperamaFonte:  Fightcade 

Se você usa emuladores para jogar online, como Yzkof e Fightcade, perceberá que os jogadores são sempre dos mesmos países. Com exceções óbvias dos gigantescos mercados dos Estados Unidos e Japão, quem domina o ranking de maior quantidade de jogadores no Fightcade são países como Brasil, México, Paquistão e outras nações do chamado terceiro mundo, onde a população tem baixa renda e o índice de desenvolvimento humano é reduzido. Isso ocorre por um motivo muito mais curioso do que apenas a pirataria.

Nos anos 80, os arcades estavam em plena ascensão, com suas máquinas tecnológicas e jogos cada vez mais avançados, mas também muito caros. Apenas uma placa com um único jogo custava mais de mil dólares. Se isso é muito hoje, imagine naquela época. Sem contar o gabinete, o sistema, o monitor de tubo, moedeiro e outros componentes. A SNK inovou com a Neo Geo MVS, um sistema interno para arcades que oferecia melhor custo-benefício, permitindo até seis cartuchos de jogos diferentes. Isso gerou uma redução significativa nos custos relacionados aos fliperamas, facilitando o acesso a novos públicos.

Versão de 4 jogos simultâneos da MVSVersão de 4 jogos simultâneos da MVSFonte:  Memoriabit 

A SNK apostou alto ao facilitar e baratear os produtos em um mercado que aceitava pagar caro por itens de menor qualidade. Porém, foi ainda mais longe ao decidir investir em países pobres, como o Brasil. A ideia surpreendente foi não vender as máquinas completas, mas apenas as placas do sistema MVS que liam os jogos, sem vincular monitor, gabinete e outros componentes que encarecem o produto. Assim, qualquer um poderia comprar quantas placas quisesse e revender ou montar as máquinas como desejasse.

Como resultado, em cada bar, padaria, sorveteria ou loja, havia uma máquina de The King of Fighters rodando nos anos 90. Isso não ocorreu apenas no Brasil, mas em vários países do terceiro mundo. A SNK foi na contramão do mercado, abrindo mão de lucros grandes e fáceis para apostar exclusivamente no povo. Essa decisão terá reflexos importantes no fim desta história.

The King of Fighters

Com a grande facilidade de encontrar máquinas em quase todas as esquinas, os jogos publicados para Neo Geo eram muito mais acessíveis à população. Entretanto, isso não significa que os jogadores da época podiam pagar para jogar. Além disso, empresas como a Capcom, com incríveis sucessos como Street Fighter 2 e diversos jogos beat’em ups, também lançaram logísticas similares posteriormente. Assim, era comum ver máquinas de fliperamas de empresas diferentes muito próximas umas das outras. Mas o que fez The King of Fighters se tornar uma febre nacional?

Poster de The King of Fighters 94 destacando o diferencial do gamePoster de The King of Fighters 94 destacando o diferencial do gameFonte:  StrategyWiki 

Neste ano, KOF completa 30 anos. O jogo uniu personagens de diversos títulos famosos da companhia, como Fatal Fury, Art of Fighting, Ikari Warriors e Psycho Soldiers, algo inédito no mercado. No entanto, o principal diferencial como jogo de luta foi o que surpreendeu na época: você não controla e enfrenta apenas um personagem durante o gameplay. Como isso impacta o sucesso? Ao colocar três lutadores de cada lado, a SNK ampliou para quase três vezes mais o tempo de duração de cada ficha, oferecendo muito mais opções e tempo de diversão. Isso era perfeito para jogadores com pouco dinheiro para gastar.

Em contrapartida, a rotatividade de jogadores nas máquinas de KOF era muito menor. Com menos fichas vendidas, o lucro também diminuía. Isso, somado ao barateamento da distribuição das máquinas, poderia levar a empresa a cortar custos em outras áreas, mas a SNK acreditava fortemente em sua visão de mercado voltada para o povo.

A companhia investiu ainda mais, construindo fábricas em diversos continentes para facilitar a distribuição desses arcades baratos, sendo a primeira delas na Zona Franca de Manaus. Tudo isso para proporcionar grandes experiências aos jogadores, não apenas com a localização completa para brasileiros e outros países, mas também aumentando exponencialmente o setor de desenvolvimento de jogos da SNK. Isso possibilitou novidades anuais em gráficos, jogabilidade, música, história e muito mais em The King of Fighters.

Legado de The King of Fighters

Nessa vontade de mostrar ao máximo de pessoas o quão bons são os fliperamas, diversas grandes histórias aconteceram pelo mundo graças à iniciativa de KOF.

Quando a Coreia do Sul restringiu a entrada de novos produtos de entretenimento do Japão devido à rixa entre os dois países, KOF ’94 era um dos únicos arcades disponíveis no país. Isso ajudou a criar vários dos maiores jogadores de jogos de luta da Coreia, como Infiltration e outros grandes nomes de Tekken. Além disso, KOF também foi um dos principais responsáveis pelo esquema de entrada ilegal de games japoneses através da China, tamanha era a paixão dos coreanos por KOF e o desejo de conhecer mais sobre o jogo.

Arslan Ash tem seu codinome em homenagem a um personagem de KOFArslan Ash tem seu codinome em homenagem a um personagem de KOFFonte:  Geosuper 

Algo parecido aconteceu no Paquistão, onde, durante a Guerra do Golfo e um golpe de Estado no país, a tensão era grande. Com o Paquistão passando por uma crise significativa, um dos poucos divertimentos disponíveis eram os fliperamas baratos. Foi assim que nasceu a lenda Arslan Ash, um dos maiores jogadores de Tekken da história, que começou jogando The King of Fighters.

Outro exemplo é a China, um país rico com uma das populações mais pobres do mundo, onde se encontram alguns dos maiores jogadores de KOF. O jovem Xiao Hai descobriu KOF ’96 e, depois, KOF ’97, tornando-se um prodígio. Ele vinha de uma área muito pobre e não tinha dinheiro para jogar, mas um amigo, também carente, sempre o ajudava a comprar fichas para treinar.

Em um momento de grande sacrifício, esse amigo vendeu sua bicicleta para ajudar Xiao Hai a realizar seu sonho de se tornar jogador profissional. Obviamente, o pai desse amigo o castigou severamente, pois a família passava por dificuldades, e o afastou de Xiao Hai, que nunca mais o viu desde então.

Essa amizade e o esforço do amigo foram a grande motivação para Xiao treinar ainda mais e se dedicar a ser o melhor do mundo. Ele sonhava em se tornar famoso para poder reencontrar o grande amigo que perdeu e agradecer por tudo que fez por ele. Esse desejo se concretizou anos depois, quando Xiao Hai reencontrou essa pessoa em um campeonato de KOF, ainda torcendo por ele na plateia.

Dramatização da história de Xiao Hai

KOF é jogo de pobre?

A resposta óbvia é não; a SNK queria que todos jogassem e se divertissem com seu game. No entanto, é fácil perceber que ele teve uma grande e importante penetração em locais de baixa renda do Brasil e do mundo.

Existem ainda dezenas de histórias de sucesso, superação, amizade e companheirismo graças a The King of Fighters. Mas por que isso não acontece em países ricos, mesmo com a SNK vendendo para lá? Nesses países, havia dinheiro para comprar máquinas mais modernas, vistosas e novidades avançadas, o que fez com que KOF não tivesse o mesmo impacto. Afinal, ele sempre foi considerado “raiz” no modo popular de dizer. Por isso, lá, KOF era apenas mais uma entre tantas máquinas nos fliperamas.

Em países de terceiro mundo, graças à facilidade de distribuição da SNK, onde quer que estivéssemos, lá estava o KOF, proporcionando diversão com o pouco dinheiro que tínhamos. Cada centavo gasto em uma ficha era valioso, pois era tudo o que tínhamos; assim, a jogatina se tornava muito importante.

Embora Street Fighter e Mortal Kombat sejam ótimos jogos e muito populares, a quantidade de pessoas daquela época que ainda se engaja com The King of Fighters é muito grande. Isso se deve ao fato de que a distribuição de arcades de KOF era muito maior do que a de Street Fighter e Mortal Kombat na época, resultando em mais pessoas jogando e, consequentemente, mais histórias e amizades sendo criadas.

The King of Fighters no Brasil

Por isso, no nosso tempo, cada ficha era valorizada ao máximo; afinal, ela carregava histórias, amizades, superações e diversão, tudo isso para um povo que não tinha dinheiro para as facilidades que outros países possuíam.

Assim como os coreanos contrabandeando KOF, ou Arslan Ash fugindo da crise e Xiao Hai fazendo um amigo para a vida toda, quantas histórias importantes você viveu perto de uma máquina de KOF? Quantas pessoas você conheceu e quantas risadas deu enquanto ouvia alguma música clássica da franquia? Esse é o segredo do sucesso de KOF: as histórias que qualquer um poderia viver a qualquer hora e em qualquer lugar.

Se não fosse todo o esforço da SNK, que renunciou lucros fáceis e até enfrentou a falência para facilitar o acesso aos fliperamas que amamos, todas as histórias e amigos que tivemos graças a jogos como KOF jamais existiriam. A SNK se sacrificou por nós. Pense nisso.

Obrigado por tudo, SNK.

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