Um dos maiores mistérios da vida, a sua organização inicial em pacotes bem embalados de gotículas de RNA (protocélulas), recebeu uma explicação inédita em um artigo recente publicado na revista Science Advances. Os autores são engenheiros da Faculdade Pritzker de Engenharia Molecular da Universidade de Chicago e do Departamento de Engenharia Química da Universidade de Houston, e biólogos do Departamento de Química da UChicago.
Um dos coautores, o reitor emérito da UChicago PME, Matthew Tirrell, esclarece em um comunicado de imprensa que “esta é uma observação distinta e nova”. De fato, o estudo interdisciplinar propõe que a água da chuva possa ter ajudado a criar uma membrana reticulada ao redor de protocélulas primitivas.
Ocorrido há 3,8 bilhões de anos, o evento é descrito como um marco fundamental na evolução da vida na Terra, por facilitar a transição das estruturas simplificadas contendo RNA para formas de vida mais complexas. A pesquisa trabalha com o conceito de “gotículas coacervadas de RNA”, pequenas esferas formadas pela agregação natural de moléculas de fita simples e outros compostos orgânicos em um ambiente aquoso.
A hipótese do RNA como origem da vida
O estudo atual defende que o RNA foi o primeiro material biológico na Terra.Fonte: Getty Images
Embora essas gotículas coacervadas, que se distinguem da água como se fossem gotas de óleo, já tivessem sido elegíveis como as primeiras protocélulas, logo foram descartadas paradoxalmente por sua extrema competência. É que qualquer uma dessas esferas de RNA com mutações pré-vida potencialmente úteis logo replicaria essa vantagem com suas “colegas”.
Logo todas seriam iguais, mas o que poderia parecer vantajoso, logo se revelaria prejudicial, pois, sem diferenciação não há competição. Isso significa que não haveria nenhum tipo de evolução, ou seja, nada de vida. Para resolver esse problema de engenharia molecular, a equipe recorreu a um biólogo, o ganhador do Prêmio Nobel Jack Szostak.
Ele havia apontado, no início dos anos 2000, o RNA, e não o DNA, como o material biológico primordial a se desenvolver em nosso planeta. Para o primeiro autor do artigo, Aman Agrawal, “é como o problema do ovo e da galinha. O que veio primeiro?”. Enquanto o DNA é a molécula que codifica informação, mas não faz nenhuma função, as proteínas desempenham funções, mas não codificam nenhuma informação genética transmissível, conclui.
A gota de chuva como organizadora do RNA primitivo
Na pesquisa atual, os autores “compraram” a ideia de Szostak de que o RNA veio primeiro. Afinal, argumenta Agrawal, da mesma forma que o DNA faz, o RNA é uma molécula capaz de codificar informações, com a vantagem se dobrar em estruturas genéticas semelhantes às proteínas, podendo realizar catálise. Assim, as gotículas coacervadas contendo formas precoces de RNA seriam as melhores candidatas a primeiras protocélulas.
Mas um artigo de 2014, do próprio Szostak, contestaria essa teoria com um argumento indiscutível: “Você pode fazer todos os tipos de gotículas de diferentes tipos de coacervados, mas eles não mantêm sua identidade separada. Eles tendem a trocar seu conteúdo de RNA muito rapidamente. Esse tem sido um problema de longa data”, explicou o biólogo.
A água da chuva é o elemento que faltava na pesquisa de coacervados.Fonte: Getty Images
A solução para esse impedimento veio por acaso, quando Agrawal começou a transferir gotículas de coacervado para água destilada, em sua pesquisa de doutorado na Universidade de Houston, que não tinha nada a ver com a origem da vida. Em um almoço com seu ex-orientador, Alamgir Karim, e Matthew Tirrel, este mencionou a pesquisa dos efeitos da água destilada em gotículas coacervadas como provável origem da vida na Terra.
E perguntou de onde poderia ter vindo a água destilada há 3,8 bilhões de anos. “Da água da chuva”, respondeu Karim automaticamente.
Usando chuva atual para comprovar a origem da vida
Com essa resposta “eureka” de Karim, Tirrell trouxe a pesquisa de água destilada de Agrawal para Szostak, que havia voltado recentemente para a UChicago, justamente para liderar um projeto chamado Iniciativa Origens da Vida.
Já trabalhando com amostras de RNA de Szostak, Agrawal descobriu que a transferência de gotículas de coacervado para água destilada aumentou o tempo de troca de RNA, de minutos para vários dias, o suficiente para haver mutação, competição e evolução. Mas havia um problema, apontado na revisão por pares: Agrawal usou água deionizada, enquanto as chuvas prebióticas eram provavelmente muito ácidas.
Com base na ideia de que não tem nada mais parecido com chuva do que a própria chuva, os autores coletaram água da chuva de Houston, do lado de fora do laboratório, em um frasco e repetiram os testes. Apesar da diferença de 750 milhões de anos, eles encontraram os mesmos resultados.
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