Apesar de a justiça não ter encontrado bens penhoráveis, de acordo com pesquisas realizadas pelo TecMundo, o Hurb (antigo Hotel Urbano) investiu pelo menos US$ 31,5 mil (pouco mais de R$ 173 mil na cotação atual) em campanhas publicitárias de busca patrocinadas em 2024.
Em junho deste ano, segundo o site Migalhas, o juiz José Guilherme Vasi Werner, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, extinguiu 263 processos contra a empresa porque não foram encontrados bens penhoráveis e nem saldo em contas bancárias para que a ré pagasse o débito com clientes. “Todas as medidas possíveis de busca por bens para satisfação do crédito dos autores neste e nos demais processos referidos foram esgotadas”, chegou a escrever o magistrado na decisão.
Plataformas de análise competitiva mostram o Paid Search do Hurb. (Imagem: TecMundo/Reprodução)
De acordo com dados de plataformas de análise competitiva, o Hurb tem realizado anúncios de pacotes completos de viagens e hoteis há um bom tempo. Uma das questões que chama a atenção é que a empresa tem divulgado passagens com ênfases em termos como “SPC”, indicando a busca por clientes que estejam no Serviço de Proteção ao Crédito.
O sistema de publicidade online utilizado se chama “Paid Search”, onde as empresas pagam para atrelar seus serviços a determinadas palavras-chaves. Com isso, ao pesquisar o termo em buscadores como o Google, o cliente recebe o anúncio no topo da página.
A Central de Transparência do Google mostra os anúncios realizados por Nicole Stadler. (Imagem: TecMundo/Reprodução)
O serviço do Google – o Google Ads –, por exemplo, entrega bastante benefícios para as marcas, já que ela podem aparecer no topo das pesquisas do site mais acessado do mundo.
No caso da publicidade do Hurb, as propagandas estão registradas em nome de Nicole Stadler, que de acordo com seu LinkedIn, é assessora executiva Sênior da marca.
História dos ‘calotes’
Não é possível quantificar o número de pessoas que foram prejudicadas pelo Hurb. Contudo, de acordo com o Fantástico, há mais de 100 mil ações na Justiça contra a empresa.
O cenário que levou a empresa a não cumprir com os bilhetes de viagens destas milhares de pessoas explodiu recentemente e afetou não somente o Hurb, mas outras empresas como a 123Milhas, que chegou a entrar com um pedido de recuperação judicial.
Na recuperação judicial, uma companhia pode organizar os débitos em um cronograma que vise o ressarcimento de todos. Este não é o caso do Hurb, que não entrou com o pedido de recuperação judicial.
Além do modelo de passagens flexíveis, o esquema de milhagens também “implodiu” nos últimos anos. (Imagem: William Thomas Cain/Getty Images)
Para chegarem neste cenário econômico complicado, as empresas de turismo têm algo em comum: a venda de passagens com datas flexíveis. Essa modalidade se popularizou durante a pandemia e acabou representando um grande problema para as empresas de turismo.
Neste tipo de serviço, os clientes pagavam muito mais barato por passagens que só teriam seus bilhetes de embarque emitidos próximos da viagem. O modelo de negócio acabou surgindo como uma forma de tentar driblar as restrições de deslocamento durante a crise sanitária, já que as pessoas não estavam podendo viajar.
Por causa disso, o que muitas empresas estavam fazendo era cobrar por uma reserva de viagem para um período que abrangia um ano ou mais. Ou seja, pessoas compraram passagens em 2021 para viajar em algum período entre 2022 e 2023 sem uma data específica, por exemplo.
As viagens vendidas por empresas como o Hurb chamavam a atenção porque eram muito mais baratas. (Imagem: narvikk/Getty Images)
Muita gente conseguiu, de fato, viajar a partir de passagens flexíveis. Mas a opinião de especialistas é que o esquema era muito parecido com pirâmides financeiras e que em alguma hora o modelo ia mesmo quebrar.
Mesmo com o alto volume de venda de passagens flexíveis, o que aconteceu é que 123Milhas e Hurb não estavam conseguindo lidar com a demanda. Com a pandemia passando, muita gente voltou a viajar e as marcas não conseguiam mais comprar as passagens por preços atrativos e tudo virou uma bola de neve.
Situação jurídica
Desde que os problemas do Hurb começaram, já foram incontáveis as decisões jurídicas contra e até favoráveis à empresa. Para se ter uma ideia, a companhia chegou a ter suspensa uma liminar que a obrigava a reembolsar em um prazo de 24 horas todos os clientes prejudicados.
A liminar foi suspensa em junho deste ano pela 4ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ). Na época, o juiz Paulo Assed Estefan determinou uma mediação entre a marca e os clientes, o que era justamente um pedido do Hurb.
Em julho, oito juízes de Juizados Especiais Cíveis (JECs) também do TJ/RJ reuniram 8 mil processos contra o Hurb. A intenção era dar celeridade aos casos. Segundo a Justiça carioca, no mês passado o Hurb era o quarto maior ré nos JECs, tendo 17 mil processos somente no estado.
É no TJ/RJ em que estão grande parte dos casos do Hurb. (Imagem: AMAERJ/Divulgação)
Antes das movimentações processuais em 2024, para tentar conter os problemas da empresa, em 2023 a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), que é ligada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, suspendeu o Hurb de vender viagens com datas flexíveis.
A empresa cumpriu o trato, mas até hoje oferece viagens sem data marcada. No caso, o Hurb dispensou a data flexível, que variava entre um período muito longo, e agora comercializa passagens de mês fixo.
Nesta modalidade, que também tem preços mais baixos, o cliente seleciona um mês e recebe a confirmação, passagens e hospedagem em até 30 dias antes do mês escolhido.
Milhares de afetados
O “quebra quebra” das empresas de viagens que negociavam as passagens flexíveis acabou dando prejuízo para milhares de pessoas.
Para se ter uma ideia, o Facebook tem um grupo chamado “Prejudicados pela Hurb” que tem 60 mil integrantes. No site Reclame Aqui, nos últimos 12 meses, o Hurb recebeu 99,6 mil reclamações, estando com o perfil de empresa “não recomendada” e avaliação geral de 4.3 pontos (em uma escala de 0 a 10).
Contudo, em muitos casos, a perda do dinheiro nem representou o maior prejuízo da história toda. Como o setor do turismo mexe com os desejos de muita gente, muitos sonhos acabaram interrompidos.
O grupo do Facebook “Prejudicados pela Hurb” tem até mesmo um abaixo-assinado contra a empresa. (Imagem: Carlos Palmeira/TecMundo)
O dentista Afonso Monteiro foi um desses prejudicados. Em 13 de março de 2022 ele efetuou a compra de um pacote do Hurb com direito a passagens aéreas (ida e volta) e hospedagem de 7 noites para duas pessoas na Itália.
O contrato previa que a viagem poderia ser realizada entre 1º de março de 2023 e 30 de junho de 2024. Com direito a até mesmo um passeio de barco para nadar nas águas cristalinas da Ilha de Capri, o serviço foi fechado por R$ 4.448,40. Só para ter uma ideia, em uma busca rápida, a reportagem não encontrou pacotes parecidos para a Itália que custam menos de R$ 11 mil (para duas pessoas e 7 noites).
Ao TecMundo, Monteiro relata que viu que o Hurb não estava cumprindo com os acordos com outros clientes e que de maneira antecipada decidiu cancelar o pedido para pegar o reembolso.
“Eu fiz a solicitação de cancelamento pelo aplicativo e lá eles diziam que o dinheiro já havia sido devolvido, o que não ocorreu. Então eu contratei um advogado para fazer a reconciliação”, conta.
Sonhos interrompidos
Rodrigo Godoy, que é gerente de TI, conta que teve interrompido um sonho de viajar com a mãe. Ele comprou um pacote all inclusive de 7 dias para Natal (RN), em 2022, para viajar em 2024.
“Eu comprei em uma época que vários amigos estavam viajando para San Andrés [Colômbia], Orlando [EUA]. Estava todo mundo conseguindo viajar pelo Hurb e por isso eu comprei. Era para eu ir ter ido comemorar o aniversário da minha mãe, mas desde o ano passado, quando veio o escândalo, eu já sabia que não ia conseguir”, relata.
Para não deixar passar a ocasião especial, Godoy conta que acabou adquirindo outro pacote para Maceió (AL), em outra companhia, e viajou com a mãe em 2023.
Rodrigo Godoy iria viajar com a mãe para o Rio Grande do Norte. (Imagem: Brastock Images/Getty Images)
“Eu estava tentando alterar a data [da viagem do Hurb], mas não estava conseguindo. Então eu cancelei e pedi reembolso. Mas desde o começo deste ano o meu pedido está na fila de pagamento e nunca mais atualizou”, afirma.
“Eu desisti de judicializar porque o que mais tem é advogado querendo lucrar em cima. Eles cobram R$ 800 para abrir o processo sabendo que não vão conseguir nada. Então como virou um capitalismo à parte no meio jurídico, eu não abri processo e estou esperando uma solução”, acrescenta.
Desesperança de ter o dinheiro de volta
A jornalista Rafaella Coury foi mais uma vítima que perdeu as esperanças em uma resolução para o caso Hurb. Em 2020, ela comprou duas passagens para o Japão para viajar entre 2023 e 2024. O pacote que ela adquiriu era de 7 noites em Tóquio e incluía hospedagem e outros serviços.
A jovem lembra que acompanhou as notícias dos problemas do Hurb, em 2022, e que ficou na expectativa se conseguiria viajar no ano seguinte. Ela preencheu as três datas em que gostaria de efetuar o voo logo quando comprou a passagem, mas isso não adiantou muito.
O Hurb vende pacotes para diversos locais do mundo, incluindo o Japão. (Imagem: Getty Images)
“Quando deu 45 dias antes da data que eu sugeri, que é o período em que eles confirmam se a viagem vai acontecer, me avisaram que não conseguiriam cumprir com a viagem para nenhuma das 3 datas que eu sugeri e que eu deveria mudar. De lá para cá eu mudei as datas várias vezes, mas sempre acontecia o mesmo problema”, diz.
“Não vai dar em nada por anos”, diz a jornalista Rafaella Coury.
Coury afirma que atualmente o tempo limite da viagem expirou e que não é possível remarcar o voucher. Ela afirma que vai entrar com o pedido de reembolso, mas que acredita que “não vai dar em nada por anos”.
Senacon acompanha
O TecMundo consultou a Senacon para saber como a entidade vem acompanhando o caso Hurb. A instituição, que pode aplicar sanções administrativas para empresas que violem as relações de consumo, informou que tem feito reuniões com a empresa de turismo com o objetivo de firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
O objetivo do TAC é “criar uma plataforma para negociação de valores devidos diretamente com os consumidores”. Essa plataforma, que nasceu também de um acordo com a Justiça Federal, deverá ser lançada em outubro deste ano.
A nota da Senacon explica também que se o Hurb descumprir o acordo firmado com a Justiça, a empresa poderá ser condenada a pagar uma multa diária de R$ 1 milhão.
A entidade de defesa do consumidor pontuou que assim que a plataforma estiver no ar, os clientes prejudicados devem se cadastrar para negociar os valores a receber e que a expectativa é que “todos os consumidores sejam ressarcidos”.
“A Senacon não pode regular as atividades comerciais de uma empresa privada, tampouco questionar valores gastos com publicidade. Não há qualquer previsão legal que impeça que uma empresa que tem penhoras em suas contas destine verbas para publicidade”, ressaltou a secretaria sobre o valor gasto pela Hurb em campanhas online.
Outro lado
O TecMundo entrou em contato com o Hurb com questionamentos sobre toda a história. Poucas horas após o Hurb enviar um comunicado ao TecMundo, os clientes Rodrigo Godoy e Afonso Monteiro receberam um reembolso de suas compras que foram citadas pela matéria.
Na extensa nota, o Hurb reconhece os problemas enfrentados, mas diz que, no entanto, está em uma “força-tarefa para a normalização das operações”.
A empresa disse que não comentaria sobre números e processos internos, mas que seguirá utilizando “estratégias de divulgação do portfólio de produtos comercializados” e fazendo “investimentos em anúncios patrocinados”.
Em relação aos casos de Godoy e Monteiro, a companhia disse que “reitera o seu comprometimento com a realização das viagens adquiridas, bem como com a devolução de valores solicitados por clientes que optaram pelo cancelamento do serviço”.
Em seu posicionamento, o Hurb ainda cita que segue renegociando as dívidas e confirma a informação da Senacon, de que a partir de outubro será lançada uma plataforma para que clientes lesados possam tentar receber o dinheiro de volta.
Confira, abaixo, a íntegra da nota do Hurb enviada ao TecMundo:
Em relação à demanda do Portal TecMundo, o Hurb afirma que reconhece os problemas enfrentados, no entanto, informa que continua trabalhando em força-tarefa para a normalização das operações. Apesar de não comentar números e processos internos, por questões legais, a empresa esclarece que, como parte do negócio, segue com estratégias de divulgação do portfólio de produtos comercializados pela travel tech, que incluem – entre outras ações – investimentos em anúncios patrocinados.
Em ritmo de retomada positiva do negócio, a companhia informa que segue com a renegociação das dívidas com os parceiros, regularizando pendências e reativando grandes fornecedores em sua plataforma. No que diz respeito aos clientes impactados, a empresa aproveita para compartilhar um grande passo a caminho do resgate da confiança dos viajantes: em junho de 2024, foi aprovado o projeto de mediação coletiva, uma proposta da empresa para dar seguimento às negociações com seus públicos. Sobre a iniciativa, a companhia acredita que a validação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ) e a experiência da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que será sua parceira na mediação, trazem a credibilidade que projeto precisa e ainda reafirmam o compromisso da empresa em estreitar o relacionamento com o seu consumidor, a fim de desenhar estratégias personalizadas que atendam aos seus interesses e aos do Hurb.
A companhia informa ainda que as reuniões junto ao Nupemec (Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, do TJRJ), com a presença da FGV, já se iniciaram com o intuito de personalizar a plataforma e alinhar as regras da mediação, que deve entrar oficialmente em vigor a partir de outubro deste ano. Além disso, retomando as conversas com a Senacon, acredita-se que o TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) deva ser assinado nos próximos dias, dando uma abrangência nacional a esta mediação e ratificando esse momento de retomada da empresa.
Sobre os casos mencionados pelo veículo, a empresa reitera o seu comprometimento com a realização das viagens adquiridas, bem como com a devolução de valores solicitados por clientes que optaram pelo cancelamento do serviço.
O Hurb nasceu com a missão de transformar e otimizar o setor de turismo, conectando pessoas e lugares. O nosso objetivo primordial é realizar o sonho de viagem a cada vez mais brasileiros. Hoje, vivemos momentos de turbulência, e sabemos que ainda haverá desafios pela frente. No entanto, reforçamos que estamos trabalhando incansavelmente em força-tarefa para normalizar as nossas operações. Para se ter uma dimensão do alto volume das operações do Hurb, ao longo dos 13 anos de história do Hurb, já foram mais de 5 milhões de pessoas embarcadas, além de aproximadamente 22 milhões de diárias vendidas – números que demonstram o comprometimento da empresa com os seus clientes.
Por fim, o Hurb frisa que, em prol da escuta ativa e cuidado com seus públicos, está à disposição para esclarecer eventuais dúvidas.