Pense em uma imagem que mostra um Jesus Cristo sereno e com os braços abertos. Ela existe, foi um sucesso de engajamento no Facebook e, fora curtidas, acumula comentários de “Amém!” de pessoas de várias nacionalidades.
Só que essa ilustração bizarra retrata Jesus com o corpo de um camarão, com várias patas menores além dos dois braços. Ele está no fundo do mar, rodeado por peixes e crustáceos. E, como você já deve imaginar, foi produzida por inteligência artificial (IA).
O infame “Jesus Camarão” (Shrimp Jesus) até virou meme. (Imagem: Forbes/Reprodução)Fonte: Forbes/Reprodução
Representações de divindades usando IA em vários contextos estão ficando comuns em tempos de criação de qualquer conteúdo por serviços generativos. Essas ilustrações tendem a bombar em redes sociais tanto pelo fator religioso quanto o estranhamento, mas outra questão pode ser debatida.
Afinal, essas recriações são consideradas desrespeito ou pecado? O TecMundo conversou com integrantes de algumas religiões para entender a posição delas sobre esse fenômeno.
Figuras religiosas de IA desrespeitam religiões?
A visão de que essas ilustrações artificiais contendo símbolos ou entidades de uma crença são problemáticas depende dos princípios da religião. Em alguns casos, isso pode ser visto de forma otimista, mesmo sob ressalvas.
Para o coordenador de Comunicação Social da Federação Espírita Brasileira (FEB), André Siqueira, IAs são “máquinas semânticas” com possível contribuição positiva e capacidade de “aprimorar o conhecimento da humanidade”.
“As representações, desde que mantenham a respeitabilidade e fidelidade ao trabalho de Allan Kardec, passarão a fazer parte do conjunto artístico-cultural da humanidade”, explica.
O francês Allan Kardec é o codificador do espiritismo. (Imagem: Fred De Noyelle/GODONG/Getty Images)
A perspectiva de Caroline Ferreira, presidenta da Associação Nacional das Religiões Afro-Brasileiras, é similar. Em sua crença, a IA “não cria uma verdade absoluta” e pode ajudar na disseminação da cultura religiosa da Umbanda e do Candomblé, não sendo um desrespeito.
Além disso, como a representação dessas religiões por muito tempo foi escondida e até proibida, esses elementos foram negligenciados até na alimentação de modelos de linguagem.
O Candomblé é uma das principais religiões de matriz africana do Brasil. (Imagem: filipefrazao/Getty Images)
No caso do catolicismo, a representação de imagens e símbolos é uma questão histórica, ocorrida em movimentos artísticos ao longo dos séculos. Como explica o padre Arnaldo Rodrigues, assessor de comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a intenção é o mais importante.
“Se a representação é feita para colaborar, vale a pena, não tem nenhum problema (…) desde que não atinja ou prejudique a fé das pessoas“, explica. Dessa forma, imagens de IA até podem ajudar na propagação da fé, mesmo “através da alegria e do humor”.
Como seria algumas selfies tiradas de algumas passagens bíblicas? © Lucas Gabriel
Segue o fio ?? pic.twitter.com/7gdivHUbAH
— Fotos de Fatos (@FotosDeFatos) June 14, 2024
Já para os muçulmanos, a conclusão é formada pelas bases da religião. Portanto, os religiosos consideram representações de Allah e do profeta Maomé algo desrespeitoso.
“Sempre que o homem tenta interpretar ou representar Deus fora das descrições contidas nas escrituras sagradas, ele produzirá diversas imagens falsas, mesmo recorrendo a Inteligência Artificial. No Islã, os muçulmanos não usam a imagem para conceber e representar Deus e o profeta Muhammad, e qualquer imagem associada ao Islam, a Deus, ao profeta e a seus símbolos sagrados, é rechaçada, é desrespeitosa”, explica Sheikh Ali Momade, da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras).
Textos sagrados e IA generativa
Apesar de várias religiões aceitarem imagens de entidades feitas por IA, a discussão toma outros rumo quando o assunto é possíveis reescritas de textos sagrados a partir de IA generativa.
O Sheikh Ali Momade ressalta que a IA “não é mais inteligente que o homem que a criou“. Assim, nem a reescrita é bem vista no Islã.
A escrita de textos por robôs é um ponto sensível dentro e fora da religião. (Imagem: Getty Images)Fonte: GettyImages
“A IA é capaz de produzir um texto qualquer, mas nunca reescreverá o Alcorão porque ela é uma criação humana, depende de algoritmos do criador. E, se o próprio criador foi e continuará incapaz de escrever algo similar ao Alcorão, o que será da IA como criatura?”, indaga Momade.
As crenças de matriz africana seguem uma conclusão parecida. “Nossa religião não se baseia em escrituras sagradas, mas sim no contato entre o espírito e o corpo, sendo extremamente necessária esta ligação para existir”, afirma Caroline.
No caso da Bíblia, a reescrita por IA não é algo sequer considerado pela Igreja. (Imagem: Getty Images)Fonte: GettyImages
Para o catolicismo, o caminho é mais restrito do que em imagens. Nas palavras do assessor da CNBB, a IA “precisa da inteligência humana para se abastecer”. Portanto, se “representações artísticas baseando-se nas palavras da sagrada escritura” são mais aceitas no catolicismo, qualquer reescrita ou reinvenção do que foi oficializado pela Igreja como sagrado não é considerada — exceto no caso de novas traduções, cuidadosamente feita por especialistas.
Já Siqueira, da FEB, alerta que é necessário fazer uma minuciosa revisão de cada um desses conteúdos, mesmo aqueles produzidos apenas para resumos e comparações.
A IA é minha religião e nada me faltará
O escritor Yuval Harari, do livro best-seller Sapiens, sugeriu em uma conferência que a IA poderia dar origem a seitas e religiões. Isso aconteceria por textos gerados artificialmente, com ou sem a participação de humanos como líderes.
Essa possibilidade é rejeitada ou minimizada pelos representantes das religiões, já que a relação estabelecida não seria capaz de se equiparar às manifestações de crenças.
Harari: IAs em breve podem até criar religiões. (Imagem: Getty Images)Fonte: GettyImages
Caroline, por exemplo, argumenta que a tecnologia seguirá “capaz de alcançar os avanços humanos, mas jamais o espiritual”. Siqueira também não acredita no cenário, mas alerta que esta seria uma inversão da relação sagrada tradicional, “em que o criado (IA) passa a ser adorado pelo criador (o homem)”.
Para o padre Arnaldo, essa hipótese representa um risco, porque já “colocamos desejos e anseios em cima da tecnologia”, apesar de ela não ser capaz de proporcionar as finalidades de uma religião. “Não creio que a inteligência artificial possa se tornar uma religião, mas ela pode condicionar comportamentos“, alerta.
O historiador e escritor Yuval Noah Harari diz a IA tem potencial de criar novas crenças. (Imagem: andreswd/Getty Images)
O padre reforça que a Igreja Católica está preocupada e deve fazer uma reflexão sobre o tema, que é visto como um desafio. O próprio papa Francisco — ele mesmo já alvo de uma montagem — com alguma frequência cita o tema em falas e, na última reunião do G7, disse que “a própria dignidade humana está em jogo” nos processos algorítmicos.
“Precisamos garantir e proteger um espaço de controle significativo do ser humano sobre o processo de escolha de programas de inteligência artificial: a própria dignidade humana está em jogo”, disse o pontífice na reunião com líderes políticos.
No caso do Islamismo, a partir do princípio de liberdade religiosa, até existe a “possibilidade da modernização e digitalização das entidades religiosas”, já que o surgimento de novas práticas é tido como a continuidade de um fenômeno que já é observado há muito tempo.
Os representantes de religiões consideram que a IA tem um grande potencial para disseminar conhecimento, mas que é preciso regulações. (Imagem: NoonVirachada/Getty Images)
Ainda assim, debates envolvendo riscos e limites são necessários, ressaltando uma discussão que está cada vez mais relevante no campo da tecnologia: a necessidade de uma regulamentação do setor.
“O que é preocupante é o uso da tecnologia em geral para ofender coletividades, denegrir a imagem de determinada religião, instituição, família ou indivíduo”, conclui Momade.